Algumas ponderações sobre a “aplicação de medidas” de proteção:

superando a falácia da condicionalidade para uma tutela efetiva da criança e do adolescente

Autores

  • Eduardo Digiácomo Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI)

DOI:

https://doi.org/10.36557/2009-3578.2025v11n2p1361-1382

Palavras-chave:

Proteção Integral; Medidas de Proteção; Violência Institucional; Intervenção.

Resumo

Este artigo examina criticamente a prática, ainda persistentemente encontrada em rotinas administrativas e judiciais, de condicionar o reconhecimento de situações de ameaça ou violação de direitos de crianças e adolescentes à prévia formalidade da “aplicação de medidas” protetivas. Sustenta-se que tal exigência constitui um profundo equívoco hermenêutico, por contrariar frontalmente a doutrina da proteção integral, insculpida como cláusula pétrea no artigo 227 da Constituição Federal de 1988, bem como o desenho normativo do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990), especialmente em seus artigos 98 e 100. Ademais, essa prática anacrônica desconsidera os sofisticados protocolos do sistema de garantia de direitos instituído pela Lei nº 13.431/2017 e regulamentado pelo Decreto nº 9.603/2018, resultando na potencialização de processos de revitimização e na imposição de atrasos indevidos e prejudiciais ao atendimento. Os objetivos centrais do presente estudo são: (i) demonstrar, de forma categórica, que o reconhecimento da situação de risco é um ato-fato jurídico que precede e independe da ulterior adoção de quaisquer medidas, sendo esta uma consequência e não um pressuposto daquele; (ii) integrar ao debate as mais recentes e relevantes atualizações legislativas que impactam a matéria, notadamente a Lei nº 14.321/2022 (que tipifica o crime de violência institucional), a Lei nº 14.344/2022 (conhecida como Lei Henry Borel) e a Lei nº 14.811/2024 (que trata das violências em ambientes educacionais); e (iii) propor um conjunto de diretrizes operacionais para aprimorar as decisões administrativas e judiciais, de modo a privilegiar a intervenção mínima, a participação informada da criança e do adolescente, e uma robusta integração intersetorial. Quanto à metodologia adotada, optou-se por um ensaio jurídico de base dogmático-normativa, realizando uma leitura sistemática e teleológica dos dispositivos legais e regulamentares pertinentes. Este percurso analítico é enriquecido por um diálogo com a jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça acerca da excepcionalidade e provisoriedade do acolhimento institucional, e culmina na sistematização de boas práticas procedimentais, tais como a rota única de atendimento, a escuta qualificada, a elaboração de planos individuais e familiares de atendimento, o monitoramento contínuo e a revisão periódica das intervenções. Conclui-se, de maneira inequívoca, que a tutela efetiva dos direitos infantojuvenis exige uma triagem qualificada e imediata, a deflagração de proteção célere sempre que indicada, o planejamento intersetorial pactuado entre os atores da rede de proteção e a judicialização proporcional, utilizada apenas como ferramenta indispensável e subsidiária. Nesse cenário, o acolhimento institucional deve ser mantido como extrema ratio, cercado de balizas temporais estritas, metas claras e reavaliações periódicas e criteriosas. Superar a falácia da “aplicação de medidas” implica, em última análise, substituir o formalismo cartorial por uma intervenção qualificada, tempestiva e humanizada, alicerçada em protocolos claros, avaliação constante de efetividade e na responsabilização por atos de violência institucional em casos de revitimização. Com o advento da Lei nº 14.321/2022, a prevenção da revitimização deixou de ser uma mera diretriz programática para se consolidar como um dever jurídico inafastável, exigindo a abstenção de reiterações procedimentais e a justificação técnica e pormenorizada de cada medida à luz dos critérios de necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito.

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Referências

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Publicado

2025-08-15

Como Citar

Digiácomo, E. (2025). Algumas ponderações sobre a “aplicação de medidas” de proteção:: superando a falácia da condicionalidade para uma tutela efetiva da criança e do adolescente. INTERFERENCE: A JOURNAL OF AUDIO CULTURE, 11(2), 1361–1382. https://doi.org/10.36557/2009-3578.2025v11n2p1361-1382

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